Com a sua tranquilidade interrompida na solidão de seu apartamento (ou pensara ainda estar só), numa noite de domingo em Porto Alegre, aquele jovem sente-se repentinamente incomodado com o barulho de duas pessoas conversando baixinho. Pensou que era a televisão, ou o rádio, ou ainda os vizinhos do lado. Mas após testificado que nenhum destes era, deu-se por conta que o som vinha da sua cozinha... Assustando, inevitavelmente o primeiro pensamento que lhe acometeu foi: São assaltantes!
O ser humano, como qualquer outro animal, quando sente-se em perigo, por instinto, sem raciocinar muito, defende-se como pode e com que tem em mãos (mesmo quando foge). E foi o caso deste nosso rapaz, ao olhar para o seu redor, tomou a primeira coisa que viu para defender-se: seu abajur da sala ─ sim, você leu corretamente, um abajur! Passa então a aproximar-se sorrateiramente da cozinha, empunhado de um abajur ridículo de estrelinhas, de um metro de altura, adquirido no tradicional Brique da Redenção de todos os domingos, por meros 34 reais (era 35 na verdade, mas ele chorou tanto por um desconto que fosse, que o comerciante acabou dando). Ao entrar na cozinha, superficialmente iluminada pela luz que vinha da sala, olha de uma extremidade a outra da peça, e vê que ninguém ali havia.
Entretanto, continuava a ouvir o som de uma longa conversa, e esta por sua vez, vinha da direção da área de serviço, conjunta à cozinha. E mais uma vez, cuidadosamente aproxima-se dos possíveis invasores. Agora, já se vê de veras angustiado, como se todo o universo tivesse naquele instante parado. Aqui a teoria de Einstein sobre a relatividade do tempo novamente se comprova, passara míseros segundos desde o momento em que aquele jovem ouvira os primeiros sussurros, mas para ele todo aquele momento de angustia parecia uma eternidade. E ainda segurando ele aquele abajur de estrelinhas, como se fosse um taco de beisebol, avista a janela da área de serviço aberta e os dois invasores...
Horas antes de tudo isso, este nosso amigo porto-alegrense, de nome Ezequiel, estivera num churrasco de confraternização com seus colegas da UFRGS. Nota: os gaúchos tradicionalmente pronunciam a abreviação da Universidade Federal como urguis. Todavia, segundo especialistas (sei lá de quê), o correto seria dizer ufirguis. Mas deixando a fonética de lado, e retomando ao que interessa, ao final da tarde, o jovem estudante, atravessa agora o Parque da Redenção (ou Redença como gosta de dizer a gurizada), em direção ao seu apartamento na Venâncio Aires, quase junto à Osvaldo Aranha. Quando, ainda no parque, um discurso em alto tom e múrmuros frenéticos de uma grande multidão lhe incomodaram os ouvidos. Aquela euforia, parecia ser alguma pregação religiosa ou ainda de socialistas fanáticos. Ezequiel não deu muita atenção ao que diziam, pois lhe soou pura utopia logo de cara. Nem se deu ao trabalho na verdade para ver onde essa multidão estava concentrada, afinal a Redenção é tão grande! Antes, preferiu seguir intrépido o seu caminho de retorno à sua casa. Contudo, para variar, cruzando ele o Monumento ao Expedicionário, um João-de-Barro lhe joga um presente bem na cabeça...
Já em sua apartamento, e de banho tomado (bendito João-de-Barro!), pensa agora enfim descansar. Isso, se não fosse incomodado por sussurros perto de si.... E assim, voltamos à última cena. Aliás, certamente uma cena não muito comum. O jovem ficou pasmo e ao mesmo tempo sem reação em ver quem eram os dois invasores em sua residência, os quais se ouvia sussurrando, eram dois joões-de-barro!
Pensou estar louco, ou ainda ser aquilo tudo um mero sonho. Pelo contrário, estava plenamente são e lúcido. Pois tudo era real. É claro, não é tão rotineiro encontrar um Dr. Dolittle por ai. Mas para ele, nada anulava a realidade dos fatos presentes naquele instante. Nisso, quieto ainda, e curioso com a tamanha ocorrência (visto que o medo, em instantes, transformou-se numa curiosidade imensurável), atenta agora ouvir a conversa das aves. Mais surpreso ficou ainda, ao se dar conta que aquele diálogo entre os joões-de-barro, era certa continuidade dos discursos que ouvira lá de passagem pela Redenção. Diziam estes entre si, que o homem, aquele feito à imagem e semelhança do Divino, escolhido para cuidar de toda a sua criação, chegara agora ao último grau possível de degradação moral, do egoísmo e do ódio contra seus semelhantes. Que ao invés de fazer o bom uso e cuidado dos recursos naturais, destes tira apenas proveito e deixa em seguida a sua marca de destruição pelo Planeta. E continuando eles, diziam já estarem cansados e revoltados disso tudo. O jovem ainda na espreita, sem ser notado, também ouviu algo sobre que os joões-de-barro do mundo todo (ou melhor, de toda a América do Sul, seu habitat), estariam planejando secretamente um meio de depor a tirania humana da Terra. Isso com ajuda dos pombos e das aves de rapina, que também aderiram ao movimento. O plano era simples e ao mesmo tempo cruel. Todos os joões-de-barro, pombos e aves de rapina do mundo todo cantariam ao mesmo tempo, de modo que criaria tamanha ressonância no Planeta, que todo o homem, mulher e criança tombaria por terra. E aqueles que sobrevivessem a esta enorme tragédia, isto é os mais fortes, passariam a ser escravos sob o governo dos joões-de-barro. Sistema que segundo eles, colocaria em ordem novamente o mundo e limparia a imundícia do ser humano.
Surpreso e principalmente aterrorizado com o conteúdo de tais revelações, sem pensar muito, o jovem Ezequiel, indagou-os dizendo: Isso o que vocês tramam não faz sentido algum! Apenas trocarão um ditadura por outra! As aves, assustadas, vendo que haviam sido descobertas, no mesmo instante bateram as asas e fugiram. O jovem, por sua vez, refletiu a noite inteira sobre o que ocorrera e ouvira. Na manhã seguinte, logo ao raiar do Sol, o jovem decidiu encarar a situação de frente, desceu até a Redenção, lá conversar com as aves.
Mal chegara ele ao Parque, em meio as árvores, os joões-de-barro aproximavam-se do jovem. Quando parou e viu, havia ao seu redor uma multidão deles. Não sabendo bem o que dizer naquele momento, mesmo sabendo que era necessário ser dito algo, uma das aves achega-se aos seus pés dizendo (em um tom intimador): Nós aqui bem sabemos que ouvistes a conversa de alguns de nossos companheiros, sobre os nossos planos. Como também sabemos que não é muito comum este dom entre os homens, a não ser que do Alto venha. Ontem ouvistes tu a nós, e descobristes as nossas intenções. Hoje nós te ouviremos, e conheceremos o propósito do dom que carregas contigo. Ezequiel começou então a falar aos milhares de joões-de-barro que ali estavam. Apenas reiterando o que anteriormente dissera exclamando aos dois invasores de seu apartamento. Dizendo ainda: Não adianta tentar mudar o mundo à força, impondo uma nova “verdade”, um novo “caminho”. Por melhor que seja a intenção, cometerá os mesmos erros dos dominadores e líderes do passado. Pois só há uma verdade e um caminho que nos levará a algum lugar que não seja ao ódio, ao egoísmo e à destruição: o amor. E não se trata de alguma utopia romântica de um mundo perfeito. Posto que, essa palavra está tão saturada pelo seu uso indevido que já perdeu até o seu significado real. Certamente, o amor mútuo não muda um sistema ou uma instituição, apenas muda pessoas. Pois o importante não são os sistemas ou as instituições, que somente representam as divisões da humanidade. Antes, o que importa são as pessoas – não um grupo, mas cada indivíduo. Sentimento esse, concreto e não-ingênuo, de atos e não de palavras, de liberdade e não de escravidão, tal somente, torna possível que o homem torne a cuidar de seu semelhante, bem como de toda a criação.
Dito tais coisas, após alguns segundos de silêncio, os joões-de-barro alegremente cantaram, como milhares de risos simultâneos. Alegres estavam, pois renovaram as suas esperanças. Vendo que a tal ortodoxia já não era mais necessária para o mundo. E assim, saíram aos quatro ventos, a retransmitir essa mesma mensagem aos demais joões-de-barro do mundo, como também aos seus companheiros de luta, os pombos e as aves de rapina. Os pombos sem muita demora aceitaram na palavra. Quanto às aves de rapina, relutaram um pouco, pois eram tão radicais quanto foram os joões-de-barro. Mas, por fim, acabaram se rendendo aos argumentos dos oleiros do Criador.
O jovem que narrou-me essa história, pediu para que fosse ele identificado apenas como Ezequiel. Contudo, suas palavras são verdadeiras. Assim como é verdadeira a mensagem desta parábola. E memorize bem essa palavra, de modo quando ouvires os risos estridentes dos joões-de-barro, como também das demais aves, lembre que elas estão falando com você e com todos os ouvidos atentos, à saber: Perpetuai o amor mútuo entre vós. E cuidai do que o Criador vos deu!
E naquele mesmo dia, sem muita pressa, o Sol se pôs sobre o Guaíba...
Conto escrito por Giovani Mariani.
Simplesmente perfeito!! Meu blog não é digno de um texto tão maravilhoso como este, apesar disso, achei a narrativa a minha cara..rsrsrs... Obrigada!
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